
Nosso espaço clínico fica numa galeria de lojas. Somos sete lojas, uma ao lado da outra. A loja vizinha, muro-a-muro conosco, é agora um consultório de saúde com algumas salas. Ao lado da porta deles – que é ao lado da nossa porta também – há uma campainha com três numerais: 01, 02, 03. E, logo abaixo, uma placa assim: digite 01 para consultório Tal; digite 02 para consultório TalTal; digite 03 para EtcETal. Centímetros acima, e mais deslocada para a direita, coladinha com a porta do Terceira Margem, está a nossa campainha. Sem número nenhum – apenas um botão cinza.
As fachadas são diferentes. Adesivos nas portas, cada um tem o seu. O da porta ao lado, um enorme sorriso, já que um dos consultórios é de dentista! Já nossa porta, película fosca e ondinhas na cor verde. A campainha deles, colada à imagem do enorme sorriso, tem três números para tocar; já a nossa campainha, mais distante um pouco, não tem número nenhum.
Acontece que:
Desde que esse lugar foi inaugurado, todos os dias alguém toca na campainha de cá, a nossa. Não para pedir informação ou socorro ou dar bom dia. Mas por ter a certeza de que o consultório do dentista não é o da porta com o sorriso; e que a campainha do dentista não é a que diz “Digite 01 para Dentista”, mas sim a campainha que não tem número nenhum.
Curioso, né?
Eu acho.
Meio chato também. Infelizmente, atendimentos clínicos têm sido interrompidos com maior constância por conta disso. A solução, por ora, será providenciar um barquinho de madeira que fique ao redor da nossa campainha, demarcando melhor nosso “território”, e afastando mais a mão adulta automática. Mas a solução, num longo termo, envolve um tanto mais de coisa. Tenho pensado demais nessa campainha cortante, repetida, agora constante por aqui.
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É que quem a toca é sempre um… adulto. A aparência da campainha vizinha e também a placa com os números são visíveis por demais, além, é claro, de uma porta de vidro cujo adesivo nela inteira é o de um sorriso branco radiante. Mas existe um automatismo em apertar um botão qualquer – o primeiro que estiver à vista. Existe um automatismo em não parar, não ver, não ler uma instrução. Um imediatismo em requerer atenção e pronto atendimento, mesmo quando não se trata de uma urgência, mas sim de um aguardo de trinta segundos, vinte, menos até… Também pode existir uma pressa assim: de tocarem a campainha correta, mas, numa então demora de abrirem a porta, recorrerem de imediato à campainha vizinha, ao botão aparente, de uma sala que não é a mesma a que eles querem entrar. Mas chamar e ter o pedido atendido é uma demanda urgente! Não é? E com quem que parece toda essa descrição?
Com elas:
As crianças que a gente cria, cuida, e leva aos psicólogos e outros profissionais. As crianças das quais muitas vezes nos queixamos por demais. Porque não param quietas; porque não têm paciência; e não leem a questão com calma antes de responder. Querem ser atendidas de pronto, não prestam atenção a nada, e assim vai,
e vêm as crianças que chegam até nós, psicólogos.
Parte considerável dessas crianças têm comportamentos iguais aos dos adultos ao seu redor. Seja de pressa, seja de desatenção, timidez, agressividade, e também de riso, de dança, de conversa solta e olhos-nos-olhos. As crianças são o que são não de maneira totalmente delas, individualmente. O coletivo também está em cada uma, em suas manifestações de comportamento, de humores e cognitivas.
Se as crianças “de hoje” são assim, como a descrição dos parágrafos acima, é em muito porque os adultos são da mesma maneira. Nossos tempos são de pressa, imediatismo, de pensar pouco e fazer muito. A pausa e a calma não têm muito lugar em nossas vidas. Nossas mãos resolvem com automatismo, se ocupando dos primeiros botões que estiverem ao alcance; a tolerância para esperar uma porta se abrir é pouca; e ler placas é coisa de quem está sempre no banco do passageiro, sem conduzir o caminho por si mesmo.
Mas vê,
Não é possível desejarmos crianças tão diferentes dos adultos que temos hoje, que convivem com elas. Adultos que estão andando por aí, indo à padaria, ao dentista, ao hospital; que têm tido filhos e netos, alunos, e sobrinhos; que não conseguem ser diferentes, mas que exigem crianças tão diferentes deles.
No entanto,
é possível e necessário partir de nós, adultos, o cultivo do que a gente deseja ao nosso redor: a pausa, a calma, a leitura atenta. O não automatismo, o menor imediatismo, a chance à espera. A gente está disposto a cultivar tudo isso, já grande assim como a gente é? Se sim, podemos esperar crianças assim, parecidinhas conosco. É isso, aliás, que quase sempre podemos esperar de uma sociedade que segue tendo adultos e crianças: que elas sejam sempre assim, um tanto parecidinhas conosco. Elas são. E vão continuar a ser.